quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Os Imigrantes na lavoura cafeeira.

A maior aspiração de todo homem livre, de qualquer posição social, era a de possuir o seu escravo, pois isto significava, no limite, livrar-se do trabalho para o seu sustento, ampliar sua área de direitos e assegurar certo status.
Essa situação não impedia a solidariedade dos pobres com os escravos, nem a aspiração destes à liberdade.
A propriedade de um ser humano trazia naturalmente consigo deveres e obrigações, que não eram tão difíceis de serem atendidos, uma vez que cabia ao próprio escravo, como dissemos, o provimento de sua subsistência e muitas vezes o seu tratamento, em caso de doença. De qualquer maneira, a apropriação do trabalho escravo tinha resultados que excediam longe os gastos com sua manutenção e controle, pois o comum ou a regra era a extração de um sobre trabalho escorchador.
Nessa linha, temas que reclamam estudo são os do comércio interno de escravos, a venda e revenda, os preços para as diferentes categorias de escravos, os mais e os menos capazes, os de capacidade limitada para o trabalho, os escravos dos segmentos inferiores da população, os escravos de escravos, a mobilidade dos escravos, a sua solidariedade e organização, a consciência social, as comunicações entre escravos, a distribuição da população escrava entre aqueles que possuíam poucos escravos, etc.
Não se esperou a abolição para que se desse a introdução do trabalho livre e se discutisse e se praticasse as diferentes formas de agenciamento e contrato de trabalho. Esse fator de produção deu margem a um fluxo imigratório continuado ao longo da segunda metade do século XIX e no século XX, pelo menos até 1930. A partir da crise de 29 as alterações que se processaram no mercado mundial de força de trabalho reduziram substancialmente as correntes migratórias para o Brasil, diante do que o trabalhador brasileiro passará a ser o recurso fundamental para atendimento da lavoura cafeeira. Durante o período anterior, ao que se conhece, esse trabalhador só era recrutado ou se apresentava de forma ancilar e para tarefas mais pesadas.
Neste texto as questões imigratória e dos imigrantes serão abordadas menos sobre seus aspectos culturais, de graus de assimilação e segregação, e mais como de mercado de trabalho em termos de movimentos internos na divisão internacional do trabalho.
Dessa maneira, embora vinculada ao problema da abolição, a imigração estrangeira para o Brasil tem outros condicionamentos externos. O esgotamento das terras na Europa, as tensões entre traba1hadores e grandes proprietários, as crises agrícolas, a opressão fiscal, o desflorestamento, a política comercial, o desemprego, as deficiências dos sistemas econômicos, incapazes de garantir trabalho para todos, o grande "negócio" em que a imigração transformou-se para o Estado, a expectativa de melhoria de vida na América, as flutuações do mercado mundial de trabalho, entre outras causas, determinam o fluxo imigrat6rio para o nosso país.
Da parte do Brasil contribuem para o estímulo à imigração toda uma gama de causas mais imediatas, que vão da propaganda, particularmente das companhias de navegação, interessadas no transporte dos imigrantes, até as notícias enviadas pelos emigrados, excitando a imaginação dos parentes e amigos, a demanda de mão-de-obra graças à expansão da lavoura, provocada pelos preços compensadores, as facilidades concedidas pelo governo, o interesse dos grandes proprietários, etc.
Embora as primeiras notícias sobre imigrantes vindos para o Brasil datem de 1817, somente na década de 1850 é que há maior incremento da imigração.
Por motivos de ordem externa e interna, que já apontamos, a política imigratória adotada pelo Brasil não conseguia índices regulares nesse deslocamento demográfico.
Na lavoura cafeeira, as dificuldades encontradas pelos imigrantes, no seu processo de adaptação, chegavam a ser até de ordem natural: exuberância do solo, com plantas de extraordinário e rápido vigor, etc.
As emoções da despedida na aldeia, de onde muitos saíam pela primeira vez, em direção ao porto de embarque, numa cidade maior que já os constrangia, deixando parentes e amigos, compromissos e pertences. Uma viagem desconfortável e com restrições a bordo. Chegavam ao porto brasileiro, onde permaneciam algum tempo praticamente confinados, sendo objeto de "negociações", intermediadas por intérpretes, entre os fazendeiros interessados ou seus prepostos e os colonos e suas famílias.
Não transcorria em melhores condições a viagem dos imigrantes do porto de desembarque no Brasil até a fazenda onde iriam trabalhar. As estradas eram precárias e o que se chamava de albergues para pernoitar não eram mais do que simples ranchos desabrigados. Embora a fazenda pudesse fornecer carros-de-boi ou tropas para o transporte dos colonos, não era raro terem que caminhar a pé, quando então as crianças, em grupos de 4, eram acomodadas em cestas que as mulas carregavam. Para os velhos e doentes também eram reservados animais ou carros-de-boi.
Como os imigrantes recebiam rações de alimentos durante a viagem, havia parada para as refeições, que eram preparadas por eles próprios. Geralmente eram compostas de carne, arroz, feijão, café, açúcar e toucinho. O preparo da comida exigia a busca de lenha e água, o que resultava em não pouco trabalho. À noite não era raro dormirem no chão, em leitos de folhas. Os mais afortunados traziam arranjos de cama, o que permitia relativo conforto. Havia fazendas que forneciam, à chegada, esses arranjos, bem como os trens necessários ao estabelecimento da família dos colonos. Claro que tudo era debitado em suas contas. Sem entender muito o que se passava, famintos e cansados, tomavam conhecimento do "regulamento da fazenda", do qual geralmente recebiam c6pia. Esse documento tratava dos direitos e deveres de cada colono, compreendendo desde os negócios até os festejos.
Na fazenda, a vida dos colonos era objeto de toda uma série de normas, que restringiam os próprios movimentos. Assim, em dia úti1, ninguém podia ausentar-se sem autorização por escrito do diretor da colônia. Facilitava-se quando o 1oca1 era muito próximo, podendo a viagem ser feita num dia só, ida-e-volta. A visita de parentes e amigos era também disciplinada, não podendo efetivar-se sem permissão.
A obediência às normas era sob pena de multa, que muitas fazendas faziam reverter para uma caixa em benefício dos colonos.
A distribuição de moradias era feita por sorteio, sendo que muitas casas por terminar exigiam dos colonos esse trabalho, em troca de certas compensações. Para os padrões de moradia do camponês europeu, as residências no Brasil eram bem deficientes. Dependendo do contrato, a moradia era cedida gratuitamente por certo período, ou então cobrava-se aluguel desde o início.
Um dos regimes de trabalho que mais se propagou, num certo período, entre os imigrantes nas fazendas de café foi o contrato de parceria. Implicava um acerto, pelo qual o fazendeiro cedia ao colono determinada área de sua propriedade, com o respectivo cafeza1, para ser cultivado, colhido e beneficiado, repartindo-se os resultados entre ambos, na proporção que fosse estipulada pelo contrato.
Na verdade, era um sistema adotado como intermediação entre a escravidão e o trabalho livre. Mal protegido pela legislação que não garantia ao colono liberdade, segurança e acesso à propriedade, o sistema mostrou-se vulneráve1, com deficiências que comprometiam o seu funcionamento. As partes contratantes defrontaram-se desde 1ogo com um conflito de interesses, marcado pela mútua desconfiança. O colono partia do pressuposto, válido muitas vezes, de que o fazendeiro aproveitava-se de todas as operações, como por exemplo pesagem, despacho, vendas, etc., para locupletar-se. Do lado dos fazendeiros, estes exerciam excessivo patriarcalismo, revoltando os colonos não acostumados a esse controle. Habituados a tratar com os escravos, a quem forçavam a longas jornadas de trabalho diário, com custo mínimo para sua alimentação, vestuário e alojamento, além do exercício de severo controle sobre sua movimentação, os fazendeiros não aceitavam a apresentação de reivindicações pelos colonos, portadores de um elenco maior de necessidades, de certo grau de cultura e politização que dificultavam as relações sociais de produção baseadas na exploração selvagem. A própria vida privada dos imigrantes era objeto do "zelo" do fazendeiro.
Enganados pelos agenciadores de viagem e recrutamento nas aldeias, os imigrantes construíam uma expectativa de rápido e relativamente fácil enriquecimento, que logo se desvanecia em esperanças perdidas.
Num contexto diverso, mas em seguimento de certa prática que já vinha da escravidão, inclusive reconhecida como uma "brecha campesina", os fazendeiros concediam aos colonos o plantio de cereais entre os pés de café, assegurando assim o abastecimento das fazendas. Em áreas menos pr6prias ao café, plantavam batata, milho, tendo também criação e vendendo o excedente aos domingos, nas feiras das vilas, depois do culto. Dadas as implicações dessa prática, voltaremos ainda a considerá-la em outro passo deste livro.
A parceria foi marcada pela rápida percepção de ambas as partes de que os seus interesses eram prejudicados. Os fazendeiros alegavam, diante dos resultados que não correspondiam, que entre os colo-nos vinham vagabundos, condenados, enfermos, ve-1hos, inválidos, etc. Da parte dos imigrantes, a falta de garantias e a realidade de sua redução a escravos estavam entre os motivos mais fortes para sua revolta.
O mercado internacional de trabalho permitia recrutamento sem muito critério de racionalidade e seleção. Dessa maneira, não se levava em conta hábitos, habilidade profissional, códigos morais, idade, condições de saúde. Essas ocorrências eram agravadas por uma legislação falha, executada e fiscalizada precariamente. Os intérpretes abusavam de ambas as partes: fazendeiros e colonos.
Em tese, alegavam seus defensores, o sistema de parceria oferecia ampla liberdade ao empregado, reduzindo os conflitos de tradições, costumes e convenções, não permitindo quistos raciais, vitalizando novas regiões. Poderia ser, continuavam, nessa linha de argumentos, uma oportunidade para adaptação à plantagem. O empresário não passaria de simples rendeiro, repartindo o trabalho de administração e planejamento, bem como os riscos com o trabalhador rural, conforme lembra Delfim Neto.
Embora o sistema de salários prefixados fosse oferecendo mais garantias aos colonos contra as oscilações do preço do café e de outros riscos, outros regimes de pagamento foram sendo praticados.
Enquanto os colonos viveram com as suas famílias dentro da fazenda, comumente um simples ajuste verbal com o fazendeiro fixava o número de pés de café que competia a cada família cuidar, havendo aquelas que, por numerosas e/ou capazes, encarregavam-se de 8 a 10 mi1 pés.
O cumprimento da tarefa que 1hes cabia, no que se incluíam o trato do cafeza1 e a colheita, determinava o pagamento que recebiam, tendo por base um ano agrícola, mas sendo feito mensalmente (mesada), em geral no primeiro sábado de cada mês. O controle contábil desse pagamento era feito precariamente, em cadernetas.
Nesse processo incluíam-se o crédito dos colonos pela venda do excedente de sua produção ao fazendeiro, bem como as suas dívidas para com este. O regime de colonato comporta geralmente três formas de pagamento:
1) fixo, por 1000 pés, sendo o colono obrigado a manter limpo e preparado o terreno para a colheita;
2) por dia de trabalho, para os serviços de poda, adubação, reparos no equipamento de produção, etc. e
3) proporcional ao número de sacas colhidas. O salário assim recebido é complementado pela lavoura de subsistência consentida ao colono, dentro das ruas do cafezal ou em terreno separado, pela criação doméstica, lenha, café para o consumo, etc. O colonato configura-se como exploração tipicamente capitalista, na qua1 o fazendeiro é o empresário que assume todos os riscos do negócio.
O sistema de contratos também era objeto de crítica das partes. Quando os colonos conseguiam liquidar seus débitos até o fina1 do contrato, deslocavam-se em massa, levando o fazendeiro a ficar exposto a sérios prejuízos. Eram ainda os fazendeiros que afirmavam sobre a relutância dos colonos em pegar a quantidade de cafeeiros que podiam tratar, destinando mais o tempo para suas lavouras e criações, o que nos mostra o atrativo que a comercialização da economia de subsistência passa a ter diante do desenvolvimento do mercado interno.
Vindos muitas vezes de países frios do Norte da Europa, os colonos estranhavam os costumes, a alimentação e as formas de vida. O asseio corporal que o tr6pico exigia parecia diminuir-1hes a resist8ncia. A sabedoria popular apontava, por exemplo, a alta incidência de bicho-de-pé à falta de lavarem os pés todas as noites.
O imigrante jovem e sadio fazia-se às vezes acompanhar de velhos e doentes, de quem não queria apartar-se, responsabilizando-se então pelo seu sustento, mas onerando, naturalmente, sua produtividade para o fazendeiro.
Os compromissos que o governo assumia nem sempre eram cumpridos, ao passo que, originários de regiões superpovoadas, onde já haviam desenvolvido técnicas agrárias e de aproveitamento do solo, os colonos viam aqui inoperante a sua experi8ncia nesse sentido, isto é, davam-se melhor com terrenos mais cansados, onde podiam usar fertilização e arado. Terras excessivamente ricas e vegetação exuberante exigiam uma reciclagem nas suas práticas.
Visto este capítulo de dificuldades, temos que reconhecer que a imigração possibilitou a continuidade da expansão cafeeira, após a abolição. Dignificou o trabalho manual, aviltado pela escravidão. Introduziu certos tipos de veículos rurais e instrumentos agrícolas europeus, ensinando novos métodos de utilização dos animais. Revolucionou a dieta alimentar brasileira: introduziram-se o consumo diário da manteiga fresca, do leite, etc., e as massas de farinha de trigo e fubá ingressaram definitivamente em nossa cozinha.
O cultivo de hortas, pomares e jardins foi desenvolvido. No meio urbano os imigrantes influenciaram os costumes e usos, a indumentária, as atividades lúdicas, a arquitetura, o lazer.
Com a imigração uma série de novas ocupações foram sendo criadas, além do que a pequena e a média indústria, origens dos grandes estabelecimentos fabris, foram-se desenvolvendo, muitas vezes a partir de um modesto atelier.
O constante fluxo imigrat6rio, uma vez incorporado ao mercado de trabalho, vai formando também um mercado consumidor, capaz de gerar ocupações e um elenco de necessidades.
Para isso também contribuía o crescimento vegetativo entre os imigrantes, incomparavelmente maior que entre os escravos. Nas colônias verificava-se que as crianças até os 15 anos representavam cerca de metade da população total, proporção que chegava a ser três vezes maior que a dos filhos de escravos.
Tanto os interesses do Estado quanto os dos fazendeiros convergiam para a introdução de famílias, uma vez que era uma forma de prender o imigrante à terra, não alimentando esperanças de volta rápida, diante da responsabilidade de mantê-1os aqui. Permitia também para o fazendeiro um trabalho suplementar barato, isto é, das mulheres e crianças.
Não se tratava de uma concessão do sistema de imigração, com o sentido de abrir livremente a oportunidade de enriquecimento, tornando os colonos proprietários e promovendo a sua ascensão social. O próprio sistema engendrará novas formas de apropriação do trabalho do imigrante, mitificando então as oportunidades e elaborando um discurso ideológico que vendia a riqueza e a felicidade, desde que trabalhassem mais...
A grande imigração, particularmente de italianos, foi fortemente estimulada e subvencionada pelos cofres públicos, ficando o governo encarregado do pagamento das passagens dos imigrantes e muitas vezes dos primeiros serviços de assistência quando de sua chegada.
Em nosso século a economia cafeeira contará,, no seu primeiro quartel, com a força de trabalho representada pelos colonos estrangeiros, e, como já afirmamos, a partir da década de 30, com a redução substancial do afluxo externo, o recrutamento no mercado do trabalho voltar-se-á para os descompassos do próprio mercado interno, dando margem a permanente migração de trabalhadores dos estados do Nordeste para São Paulo e Paraná, o que, se eliminou alguns problemas, criou entretanto novas dificuldades.
A exploração da força de trabalho é feita através de diferentes formas contratuais de trabalho ou de acerto verbal. No Paraná, difundiu-se muito o sistema de meias, incluindo a formação e/ou condução dos cafezais, ficando 50% da produção para cada uma das partes. Ao meeiro cabe também a exploração das culturas de subsistência.
Para a lavoura cafeeira particularmente, o problema da mão-de-obra marca toda a sua história. A mobilização de um grande efetivo de força de trabalho, bem como as dificuldades naturais da mecanização, levam a lavoura tradicional a despender em mão-de-obra 30 a 50% do custo de produção.
Amaral Lapa, José Roberto do, A Economia Cafeeira, coleção Tudo é História, Editora Brasiliense, São Paulo